O importante é jamais desistir de ser você mesmo.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Pretensão Salarial





















Todos têm um sonho, é algo inegável. E, por mais que muitos digam ter o sonho da casa própria, do carro zero, ou mesmo nada disso, declarando querer alguém que os ame e saúde, a verdade escondida na alma de cada um está selada na mentira do tópico "Pretensão Salarial" de seus currículos. Afinal, quem nunca pensou em escrever um milhão de reais que atire a primeira pedra!

O tempo passa, a experiência profissional vem, e acabamos por nos conformar com o máximo que nos for possível, pois, verdade seja dita, se multiplicar dinheiro fosse fácil, Jesus não teria escolhido pães. O problema é quando este objetivo tão básico, tão focado na sobrevivência (afinal estou me referindo a menos de 0,2% do salario citado acima, que já é algo acima da média, mas não permite comprar uma Ferrari) se volta contra nós. Onde o pouco está acima da média, quem teve pouco pode acabar sem absolutamente nada. A Firma me forneceu isto. E não pensem que estou reclamando. O problema é que, algo que era para ser um orgulho, acabou mostrando-se um fardo na hora de procurar recolocação. Foi parecido com o toque de Midas, com a pequena diferença que, se eu pudesse transformar as coisas em ouro num toque, não padeceria do desespero de ver o dinheiro que juntei com tanto trabalho e sacrifício esvair-se ralo abaixo (certo que explicar pra Receita Federal seria um problema, mas ao menos na cadeia teria almoço e janta).

"Bom dia, senhor!"

"Bom dia, moça. Vi que vocês tem uma vaga para operador de máquinas."

"Sim, claro. Deixe-me ver seu currículo... humm... mas o quê?", faziam uma pausa dramática. Engoliam em seco. Depois olhavam-me de cima a baixo com uma mistura de asco e desprezo: "Sinto muito, mas a vaga já foi preenchida."

Era a hora na qual eu percorria com o olhar a sala vazia da agência, lembrando que esperara quinze minutos para que eles abrissem: "Preenchida por quem, se fui o primeiro a chegar?"

"Foi preenchida ontem."

"Mas não faz nem um minuto que você me confirmou que a vaga estava aberta."

"Quando foi isso?!"

"Quando eu perguntei 'a vaga para operador de máquinas' e você respondeu 'sim, claro' e pediu meu currículo!"

Olhavam com bocas entreabertas, olhos estatelados: "Eu?"

"Sim! Você!"

"Ah! Me desculpe. É que pensei que o senhor se referia a outra vaga."

"Ora... se for por isso não tem problema!", respirava eu aliviado: "Pode me falar sobre esta outra vaga?"

"Sinto muito. Mas pra outra vaga o senhor não se enquadra no perfil."

Respirava fundo, na cabeça voavam um milhão de palavrões. Quando decidia escolher aleatoriamente qualquer um, sentia A Mão cobrir meu ombro, pescoço e peito, tudo numa afagada só. E as luzes se apagavam ao meu redor, como se aquela mão fosse dona de todas as sombras do mundo.

"Está tudo bem, Severino", diziam as recepcionistas, encarando-me com um misto de ironia e desafio: "O rapaz já está de saída."

Com uma sutileza dessa, como dizer "não"? E de onde veio aquela mão poderia vir outra (nem me atrevia a virar-me para encarar o indivíduo, a mão já me metia medo o bastante).

E as economias vão indo, as contas vão chegando, das cobranças vamos fugindo, da pendura na padoca perduramos dia após dia (até que se passe mais um mês e comecemos a procurar outros caminhos, outras ruas, outras padocas e outras penduras). E ficamos menos pretensiosos, menos exigentes quanto ao salário.

"Pretensão salarial?", pergunta a atendente ao desempregado de um mês.

"Dois mil", responde o dito cujo.

"Pretensão salarial, senhor?", pergunta a mesma atendente ao mesmo desempregado três meses depois.

"Mil... mil e quinhentos!", diz o rapaz, crente de estar acertando desta vez.

"Quanto você quer ganhar hoje?", pergunta a mesma atendente ao mesmo homem um ano depois.

"Pelo amor de Deus! Se me derem um pão com queijo por dia não precisa nem de salário!"

"Eu tenho uma vaga que paga com pão e queijo!"

"Então me dá!"

Uma careta, um dar de ombros: "Sinto muito, mas a empresa tem a política de não rebaixar a carteira."

Mas não pense que não procurei vagas na minha média salarial. Procurei. Mas existe algo engraçado com essas vagas.

"Bom dia, senhor."

"Bom dia. Vi lá fora uma vaga para Comprador Técnico. Ainda está aberta?"

"Sim, senhor. Deixe-me ver seu currículo, por gentileza?", uma pausa para a leitura, uma leve ruga no canto da boca: "Sinto muito, mas o senhor não se..."

"Não me enquadro no perfil! Não me enquadro no quadro! Não sirvo nem pra quadrado!..", paro ao sentir o toque de uma Mão: "Por favor, moça! Eu não quero briga. Só preciso de um emprego!"

"Mas eu não posso fazer nada! São as exigências da empresa."

"Posso ao menos saber quais? Pois eu não consigo entender! Pedem Comprador Técnico, e eu sou um técnico! O quê há de errado comigo?"

"Acho que você tá apertando demais, Severino. Ele está ficando roxo.", diz a moça À Mão, depois para mim: "Se eu te disser, promete que vai embora e não volta mais?"

"Não sei...", A Mão faz uma leve pressão, estalando alguns ossos do meu ombro: "Tá! Eu não volto mais!"

"Tudo bem.", um aceno de cabeça e A Mão se evapora no ar: "O senhor tem o técnico, inglês avançado, dois anos na ultima empresa como Operador de Produção. Correto?"

"Sim.", respondi, pensando que ao menos ela lera meu currículo.

"Pois bem! A Empresa pede quatro anos de experiência na função, inglês fluente com comprovante de vivência no exterior, Técnico, Engenharia com diploma e CREA (cursando Arquitetura é um diferencial), doutorado com a tese em mãos para o dia da entrevista, carro próprio, casado, e com, no mínimo, dois filhos."

"Tudo isso só pra Comprador Técnico?"

"Não. Isso é pro Auxiliar do Comprador Técnico."

Ficamos em silêncio por alguns segundos. Pensei em pedir o telefone dela só pra não perder a viagem (geralmente são umas gracinhas as atendentes de agências de emprego). Mas, ao sentir o chão vibrar e perceber as luzes se afastando lentamente, peguei minha caixa de chocolates, dizendo "Adeus!" e ganhando a escada com passos largos. Ao menos não perdi o horário de pico, quando o ônibus está lotado de pessoas bondosas que só compram chocolates para que eu fique calado.

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