O importante é jamais desistir de ser você mesmo.

domingo, 7 de junho de 2015

Último Cigarro

Pra quem achava que o céu era o limite, o teto baixo deste quarto oprime bastante. Em breve a polícia baterá na porta. Daqui a uma hora. Um minuto. Um ano. Mas baterá! Não há dúvida. Certamente já sabem onde estou. Um hotel vagabundo de Porto Alegre, com duas prostitutas de cinquenta reais na entrada como testemunhas. Talvez Deus por testemunha, mas acho que ele encontra-se ocupado demais para depor a meu favor.

Como vim parar aqui? E onde está a água? É como se essas paredes mofadas fossem doses letais de amnésia que me levam a esquecer quem sou. Quem sou? Bateram na porta, ou foi o vento que batucou na janela? Invadirão pela janela? Quatro andares, sem escada de emergência. Não sou tão importante para uma manobra tão arriscada.

Uma fresta. Na rua as pessoas se movem como se nada estivesse acontecendo. Como se eu não acontecesse neste exato momento. Um rapaz apressado esbarra em uma das prostitutas, mas segue sem olhar para trás. Ela abre a boca, provável prefácio de um palavrão, mas o rapaz foi mais rápido, atravessou a rua e já está longe. Longe. A prostituta murmura algo, passa a mão nos cabelos curtos, pega o celular e esquece a raiva de alguém que chegou e se foi. Foda-se.


Queria estar longe daqui. Queria mesmo era ser longe. Ser tudo, menos isso. Queria ser alguém longe deste rádio que rosna uma música desafinada que não acalma. Acalmar? Talvez seja tarde para pedir calma, não acha? Imbecil! Imprestável! Preso na porra de um quarto com uma cama forrada por lençóis sujos de algo indecifrável. Preso esperando ser preso, esperando a morte, esperando sei lá mais o quê, ou mesmo mais nada. E o vento. Cada batida na janela é uma parada cardíaca. Tum. Tum. Tum. Queria explodir essa janela.

Não é da janela. Agora sei. O vento não tem tanto ritmo. Polícia? Sem gritos. Sem tiros. Mas pode ser. Esperando o momento para me pegar de guarda baixa. Não vou vacilar. Ainda tenho. Munição? Uma. Duas. Três. Três balas! Até em briga de faca eu levo a pior. Tremendo, ainda por cima. Tremendo por baixo também. Tremendo. Nem que a pessoa segurasse o canhão eu acertaria.

Encosto. Aperto a coronha. Não vou me entregar. Já me entreguei demais. Enfio o olho no olho mágico. Um senhor, cabelos grisalhos cobrindo as orelhas, topo calvo. Bigode. Camisa pólo branca. Poderia ser qualquer um. Não sei. Um hotel barato como este fornece uniformes?

Tiro o olho, acomodando a boca da arma no globo de cristal. Talvez tenha família, filhos, netos. Pessoas que lembrarão de mim até o último suspiro. Não vou me precipitar. Provavelmente deseje uma morte calma, num quarto escuro, apertado, de teto baixo, mofado, e silencioso. Quem sabe um rádio rosnando alguma coisa indecifrável. Poderia lhe fazer um favor, verdade seja dita. Mas só tenho três balas.

Uma fresta. Diz coisas sobre água. Que porra de água? Se mantém na linha de um olho mágico prestes a fazer o truque final. Que porra de água? O cão está escorregando sob o polegar molhado pelo suor. A água. Clec! Que porra de água? O velho começa a suar, me encarando com os olhos trêmulos e marejados. A água. Nas suas mãos uma garrafa d'água vibra levemente, como se soubesse mais que o velho sobre o destino. Que água? O indicador enrijece. Todos suados. Suamos. A água. A arma. O velho. Eu. Todos prevendo o fim que se aproxima. Que água!! A água.

A água. Pedi há tanto tempo que esqueci da sede. Pego rápido pelo vão da porta, fechando-a em seguida. Fico um tempo parado, ainda esperando o pior. Passos descompassados se arrastam assustados por um corredor calado. Manco. Pensionista tentando tirar um pouco mais servindo quartos num hotel vagabundo. Provavelmente acidente de trabalho. Aposentado. Um coitado.

Sento na cama, jogando a garrafa no chão. Perdi mais que a sede. Perdi muitas coisas, e não faço ideia de onde as deixei. Tudo minha culpa. Ou nem tudo. Mas que diferença faz? Em breve baterão na porta, pelo menos seis caras com coletes à prova de balas. Estarão suados? Terão medo de morrer, ou estarão suficientemente acostumados a matar? Eu tenho três, mas só posso usar duas. E se não for a polícia? É sábio guardar uma. Existem coisas piores que a morte, e acho coerente morrer sem conhecê-las.

Abro a garrafa, dou um gole. Sinto ânsia. O quê fazer enquanto espero? No banheiro há um espelho de corpo inteiro. A última foto? O último cigarro. Deveria ter pedido cigarros em vez de água. Um. Mais três. E só posso usar duas.

Um corpo saudável. Forte, apesar da alimentação pouco balanceada. Uma máquina de movimentos prestes a se espatifar, virar cacos. Enquanto isso o velho da água se arrasta pelo chão, se arrasta pela vida graças a uma pensão medíocre. Que desperdício! Acabar assim! Num quarto apertado, mofado, barato e silencioso! Apavorado, escondido, temendo até um pobre idoso manco que entrega garrafas d'água para viver. Ou para morrer menos. Eis um ponto de vista que não me cabe analisar. Um, mais três. Porém apenas duas.

Um. Mais três. Será na janela? Não lembro do vento bater com tanta autoridade. Quatro. Que esperem. Vou ascender este último cigarro, tudo o que me restou da. Do quê? Não faço ideia. É como se tivesse passado minha vida inteira neste quarto imundo, como se tudo se resumisse a este momento. Todos os anos foram apenas para esperar a morte bater. Último cigarro. Uma última foto para que alguém se lembre, se é que há alguém. E as duas balas que não serão mortais. Serei lembrança, sobreviverei na lembrança. Até que cheguem ao último suspiro, deitados numa cama de um quarto apertado, escuro, calado. Talvez mancos. Não importa. É só fechar os olhos para ver o céu. Só guardar um. Um. Dois. Três!

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